quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

A NOITE É UMA CRIANÇA




Gosto da noite!
Na infância, a noite enluarada e misteriosa trazia à mente mil segredos do além mato. Sim, além mato. Se Fernando Pessoa fez juras de amor pelo além mar, eu posso muito bem declarar a minha paixão pelo além mato... 
À noite, quando todos os gatos são pardos e todas as sombras se escondem, eu ficava a imaginar os mistérios do existente um pouco além do pasto do Franchini, do cerrado do Seu Domingos Jardini, da chácara do Sô Dorico... 
Á noite arrepiava-me ouvir o grunhido de algum animal perdido; inspirava-me o cantar de um galo ao longe; encabulava-me o choro de alguma criança em alguma casa distante. À noite o medo indizível se apossava de mim, ao perceber que meu pai roncava alto e o seu ronco, mesmo que abafado pelo chiado do rádio, trazia a certeza de que ele estava em outra esfera e eu abandonado. 
Minha companhia, então, era o mundo dos adultos, as tristezas e desilusões cantadas e contadas por Carlos Gardel, Bienvenido Granda, Orlando Silva, Ângela Maria, Altemar Dutra, Agostinho dos Santos, Tibabi e Miltinho, Tonico e Tinoco, Canário e Passarinho, Roberto Carlos, Dalva de Oliveira, Edith Piaf, Waldick Soriano...
Gosto da noite...
Na adolescência, a noite escura e misteriosa trazia aos olhos mil estrelas do além de onde a alma alcança. Sim, além de onde a alma alcança. Se Fernando Pessoa fez preces saudosas para o além do mar, eu posso muito bem declarar minha saudade pelo além da alma...
À noite, quando todos os namorados se recolhiam, quando todas as namoradas se preservavam, eu ficava a imaginar os mistérios do amor, esse amor indizível, ainda não vivido. Amor por Tereza – a do tango; amor pela caboclinha – a do Juca, descrita por Garcia Neto e cantada por Tonico e Tinoco; amor pela inominada que inspirou Proposta, de Roberto e Erasmo; amor que ficou no ar, com a despedida precoce de Agostinho dos Santos; amor no incompreensível (pra mim) francês, mas inteligível hino entoado por Piaf.
Gosto da noite...
Depois do reboliço dos tempos dos bares, das cervejas e das Pepsi com limão; depois dos odores dos cigarros e dos rumores dos enamorados desencontrados, veio o tempo de paz...
Gosto da noite...
À noite, ainda ouço o galo cantar, os ruídos dos rádios na vizinhança ou “bate-estaca” dos alterados alto-falantes de algum automóvel e as sirenes de bombeiro a anunciar que os notívagos pedem socorro. Mas, também, a noite traz o brilho da Lua.
A noite traz, agora, o respirar tranquilo da Isamara e o encostar amoroso da Cristina, anunciando que depois da madrugada vem um novo dia.





Beto Chagas é escritor e psicólogo,  
autor do livro de crônicas 
Palavras Contidas 



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